Mondialisation - Etat des lieux
Marcos ARRUDA - Texte paru sur la liste "bem-vind@attac.org" - Février 1999 | |
GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA NEOLIBERAL: GRAVE ENFERMIDADE DO CAPITALISMO
Hipertrofia do dinheiro. O instrumento que simbolizava a riqueza real criada pela Humanidade foi virtualmente transformado em riqueza real. De símbolo das mercadorias a serem intercambiadas no mercado passou ele próprio a mercadoria. Ficção. Ilusão. Como o Ante-Cristo, que se apresenta como o verdadeiro Cristo mas não passa de uma farsa. O dinheiro no capitalismo globalizado de hoje foi transformado numa farsa. Ele não representa mais a riqueza real. E esta pode ser uma enfermidade fatal para o capitalismo globalizado.
Que é o dinheiro hoje? Não são mais apenas bilhetes e moedas impressos pelo Tesouro das nações. São também os títulos e bônus produzidos pelas agências financeiras dos governos. São também as ações, debêntures e outros instrumentos lançados pelas empresas de capital aberto, que hoje abarrotam os mercados de capitais. Todos estes papéis pretendem representar riqueza real já produzida ou a ser produzida no futuro. São também as moedas de outros países, também chamadas divisas, que ganharam um mercado só para si, e cujo comércio ativo e febril atravanca hoje as linhas telefônicas do mundo inteiro.
Que buscam governos e empresas com a produção desses papéis? Buscam acumular liquidez para comprarem e gastarem mais. Com uma forma de dinheiro, os títulos, bônus e ações, buscam arrecadam outro, o dinheiro-moeda. Com dinheiro, alugam ou compram dinheiro. E cada vez mais a economia gira em torno de dinheiro em vez de produtos reais. E cada vez mais as operações financeiras se transformam de meio em fim da atividade econômica.
Em que resulta esta produção de papéis pelos governos e empresas? Resulta em endividamento. Quando o valor de referência era o ouro, o dinheiro-moeda era um título de dívida do governo para com o seu detentor: em troca da moeda, o detentor tinha direito de receber um certo peso de ouro. Hoje, o dinheiro-moeda não tem mais valor de referência. Num número crescente de países, uma referência informal tende a ser o dólar norte-americano. Mas o dólar também é dinheiro, portanto tem um caráter virtual até que represente de fato riqueza real. Ou, noutras palavras, é virtual todo dólar que circula sem ter como base riqueza real. E se esse dólar é virtual, a moeda que toma como referência esse dólar também é virtual, formando uma cadeia crescente de virtualidade, de ilusão, de um poder de compra superior à riqueza real que existe para ser comprada. Portanto, uma cadeia inflacionária, que empurra sempre para cima o preço dos produtos reais.
Os papéis que têm como lastro aquela moeda virtual, cuja referência é o dólar virtual, também são virtuais. Os detentores desses papéis buscam uma remuneração, e a obtêm através dos juros que recebem pelo aluguel do seu dinheiro-moeda. Papéis são um investimento fácil para eles, pois não os obrigam a trabalhar para obter uma remuneração. Esta lhes chega ou a partir do trabalho de outros, ou através de dinheiro-moeda também virtual, pois sem lastro na riqueza real. O crescimento não regulado nem planejado dessa atividade de troca de dinheiro-moeda por dinheiros-papéis e vice-versa resultou em crescente especulação, e acabou criando uma grande bolha de ar na economia mundial: uma bolha de dinheiros virtuais, que alimentam processos de gastos e consumo excessivos por parte de indivíduos, governos, empresas e bancos, até o momento em que a bolha estoura. E não há como evitar que a bolha estoure, a não ser desmanchando-a. Para isto, se requer vontade política e um ativo sentido ético por parte de todos os que se beneficiam temporariamente com a bolha. Requer também uma pressão incansável por parte dos que são prejudicados por ela e serão as principais vítimas no caso dela explodir.
O caso do governo brasileiro é típico. Através de uma política de juros reais altíssimos e da venda de títulos e bônus do Tesouro e do Banco Central, o governo FHC multiplicou a dívida interna pública por mais de cinco, passando-a de R$ 60 bilhões em janeiro de 1994, quando tomou posse, a R$ 325 bilhões em julho de 1998. Construiu sua política financeira e de investimentos com base na poupança externa, buscando atrair os dinheiros dos investidores externos para tampar os buracos de suas contas. Quando a crise mexicana, depois a asiática, depois a russa puseram em risco esses investimentos e a estabilidade artificial do real, o governo FHC não deu ouvidos a estes sinais de perigo. Em vez de criar instrumentos de controle e regulação das entradas e saídas de capitais externos, preferiu aumentar a taxa de juros e, recentemente, também oferecer uma isenção de imposto sobre os ganhos financeiros, para atrair esses capitais, que estavam devastando aquelas economias com sua sede de ganhos fáceis e seu medo de perdê-los, e ameaçavam devastar também a brasileira..O governo brasileiro foi irresponsável e inconsciente, e em conseqüência sua bolha estourou em 12 de janeiro de 1999, ameaçando arrastar consigo outras economias latino-americanas e, talvez até, os EUA.
A bolha especulativa internacional é hoje formada por todos os dinheiros que circulam velozmente pelo mundo, procurando oportunidades para reproduzir-se sem esforço, sem trabalho produtivo, sem criação de riqueza real, apenas pela troca de mãos, pela especulação com divisas, produtos que serão produzidos e comercializados no futuro, títulos da dívida externa de países endividados, e até mesmo os dinheiros da droga, do tráfico de armas, e de outras atividades ilegais e imorais. A soma total deles não foi medida com precisão, mas estima-se que ultrapasse hoje os US$ 100 trilhões!
Os agentes alimentadores desta bolha são diversos. Fala-se muito hoje do "capitalismo popular" dos EUA ou da Suíça, onde milhões de indivíduos possuem ações de empresas, títulos públicos, títulos da dívida externa, divisas estrangeiras. Mas são os grandes bancos e empresas de investimento, os fundos de pensão, e outros tipos de investidores institucionais, privados e mesmo estatais os principais agentes, tanto em termos de quantidade de dinheiros que detêm, quanto em termos da freqüência e velocidade da circulação dos mesmos. São eles os responsáveis pela bolha. E seu espaço privilegiado de ação são os mercados de capitais, criados no mundo pobre e no Europa do Leste à imagem e semelhança dos mercados de capitais dos países altamente industrializados. São eles que hoje passeiam seus dinheiros virtuais pelo mundo, gerando crises por onde passam, atacando especulativamente as moedas locais, não só quando saem, mas a partir do momento em que entram no espaço de cada economia. Retirada especulativa seria o nome mais adequado para a saída precipitada dos dinheiros destes agentes dos mercados de capitais de um país. Medo? Sim, medo de perder os ganhos fáceis.
Em meados de janeiro de 1999, um pequeno investidor na Suíça aplicou FS 6.000 num banco de administração de fortunas e, três dias depois, resgatou o investimento: para sua surpresa o valor havia crescido para FS 7.300!!! Uma remuneração de mais de 21% em três dias! Que atividade produziria tamanho ganho, com tal facilidade? Que país ou instituição pagaria tamanha taxa de juros. Nenhum. É pura especulação com divisas. Ter a informação de que haverá uma desvalorização de moeda, aplicar nela e vendê-la depois da desvalorização. E que moeda foi subitamente desvalorizada em meados de janeiro? O real brasileiro, que entre 12 e 19 de janeiro perdeu 25% do seu valor em relação ao dólar norte-americano, e no 22 já havia perdido outros outros 18 pontos percentuais! Este é um exemplo típico de especulação com divisas. À raiz desta especulação estaria algum funcionário do governo brasileiro que "deu a dica" para seu "parceiro" internacional... Assim funciona o sistema financeiro mundial hoje, este é um exemplo claro da lógica e da ética do capital: tudo que multiplica os ganhos do capital é válido e bom, tudo que impede é mau ou é estúpido.
O direito irrestrito de governos e empresas de emitir estes papéis provocou uma inundação de dinheiro virtual nos mercados do mundo. Pois grande parte deles é lançado na suposição de que o governo ou a empresa vai conseguir transformá-lo cedo ou tarde em riqueza real, e assim resgatá-lo pelo valor que ele supõe representar. Esta suposição faz parte da esfera subjetiva da economia, aquela que opera com base em valores não materiais, como a confiança, a antevisão, a esperança. E quando o governo ou a empresa não conseguem ressarcir o detentor dos seus dinheiros, tornam-se insolventes provando que sua suposição era falsa e que a confiança e esperança neles depositados era indevida, porque faltaram planejamento adequado, regras e supervisão para garantir que o jogo fosse correto e limpo, e porque seus dinheiros eram apenas virtuais.
Tão virtuais como as fichas de um cassino, que equivalem a certa quantia de dinheiro-moeda, mas não necessariamente a produto real. E mesmo no círculo de virtualidade que é a economia de um cassino, tem que haver planejamento. Se o cassino põe em circulação um valor em fichas superior à quantidade de dinheiro que espera arrecadar dos seus clientes, incluindo aquele que paga os custos operacionais, e remunera proprietários e empregados, o cassino arrisca quebrar. Portanto, a racionalidade econômica de um cassino envolve limites à sua liberdade de lançar moeda (fichas), que é sua capacidade de endividar-se junto aos seus clientes.
Vivemos hoje uma economia-cassino a nível mundial. E com ela um risco quase incontornável de uma crise financeira e socioeconômica de dimensão global. Uma quantia gigantesca de dinheiro em diversas formas circula pelo mundo, sem lastro em riqueza real. E circula de forma cada vez mais virtual, isto é, em telas de computador em vez de em papéis na mão dos seus detentores. E circula numa velocidade espantosa, desde que a eletrônica permitiu a informatização do intercâmbio desses dinheiros. Hoje é possível trocar tudo por via eletrônica, títulos, bônus, ações, etc. e até mesmo dinheiro-moeda na forma de divisas, E tanto a emissão dessas moedas quanto sua circulação podem ser realizadas sem restrições, sem regulações efetivas, mesmo se os Bancos Centrais impõem a empresas e bancos certas regras que pretendem limitar essa liberdade. Quando há regras e elas funcionam, o endividamento das empresas e bancos tende a ser viável. Quando os governos se impõem regras que limitam seu direito de endividar-se, e cumprem essas regras, eles também tendem a permanecer solventes e a gerir de forma viável e competente a economia da nação.
No mundo da globalização financeira, porém, isto já não acontece. Governos, empresas e bancos pelo mundo afora estão sobre-endividados e arriscam quebrar. Mesmo os países ricos ou os bancos empresas que detêm mais ativos, têm acumulado dívidas que os estão levando, cedo ou tarde, ao momento da verdade: ou pagam, ou quebram. Para não quebrar, os governos cortam seus investimentos, sobretudo na área social, e aumentam seus impostos. A Suíça, o país de renda por habitante mais alta do mundo, refúgio de dinheiros limpos e sujos do mundo inteiro, é um bom exemplo disso. Clamando falta de recursos, o governo confederativo e os cantonais têm sistematicamente cortado investimentos na área social. Recentemente, o governo suíço anunciou um aumento de um ponto pencentual (de 6,5% para 7,5%) da TVA para compensar um déficit orçamentário de FS 3 bilhões. Mais tarde, desculpou-se junto ao público dizendo que, por algum erro de cálculo, o déficit era de apenas FS 300 milhões, um décimo do previsto. Mas não ressarciu os contribuintes por esse erro. Diz que precisa liquidar até o ano 2000 uma dívida externa acumulada ao longo dos anos de FS 7 bilhões! O governo norte-americano opera com altos níveis de endividamento. Empresas e bancos de todos os tamanhos, quando chegam às bordas da insolvência, frequentemente se fundem com outras que no momento são mais saudáveis, ou são compradas por elas. Vivemos hoje uma bola de neve de fusões e aquisições que aponta para uma economia global altamente concentrada e monopolizada em poucos anos mais... até que a bolha exploda.
A ideologia neoliberal tem conformado o meio ambiente da globalização do capitalismo financeiro. Ela propõe que as leis do mercados são universalmente válidas para a existência humana em todos os campos. Tudo deve ser mercantilizado, e o mercado deve ser deixado livre para que mercadorias e dinheiro circulem adequadamente. Assim, responderão a todas as necessidades e distribuirão eficazmente a riqueza produzida. Toda regulação é malvinda, porque impede o livre fluxo de mercadorias e dinheiro. Na prática, o capitalismo neoliberal é o responsável pela economia-cassino que se globalizou no mundo atual.
Nos anos 80, o endividamento dos países do hemisfério Sul, realizado por irresponsabilidade tanto dos governos quanto dos seus credores, chegaram, por diversas razões, a níveis de insolvência. Em troca da renegociação dessas dívidas, os credores impuseram regras que tinham por objetivo principal liberalizar as economias e os mercados dos países devedores. Isto quer dizer, regras para eliminar regras, para neutralizar o poder regulador e sancionador dos governos, inclusive liquidando o patrimônio público através da privatização e da desnacionalização de empresas do Estado. Desta forma, governos de países muito endividados, que eram em geral os de maior índice de pobreza e de longa história de subordinação colonial, trocaram riqueza real por riqueza virtual. Na década dos 80, muitos tomaram novos empréstimos externos para pagar empréstimos anteriores, e não para investir na criação de nova riqueza ou de capacidade para produzi-la. Ficaram amarrados a um círculo vicioso de endividamento do qual não iriam mais escapar, pelo menos até este fim de século.
O sobre-endividamento dos países do hemisfério Sul, acompanhados agora dos países do Leste europeu, representa uma forma moderna de colonização. Estão obrigados a servir a dívida aos credores do Norte num horizonte que não parece ter fim, como se estivessem pagando um tributo regular às metrópoles coloniais. Com uma diferença importante: essas metrópoles não são mais apenas os países colonizadores ou imperiais, mas também empresas e bancos privados com base nos países ricos, e as instituições financeiras multilaterais -- o Banco Mundial, o FMI e os bancos de "desenvolvimento" regionais.
A enfermidade que se manifesta na hipertrofia do dinheiro e do sobre-endividamento só podem ser superada mediante um sistema de planejamento e regulação que hoje não existe, capaz de liquidar de forma radical com aquelas. É improvável que o próprio capitalismo estabeleça um tal sistema. Pois os capitalistas não querem dar-se conta de que é enfermidade, e que pode ser fatal para o próprio sistema. Quando se dão conta, não querem adotar medidas radicais de cura. Pois estas medidas também podem ser fatais para o sistema! Na verdade, o capitalismo está cada vez mais espremido entre duas pressões. Por um lado, a pressão em favor de planejamento da emissão das diferentes formas de dinheiro e do endividamento, por atores públicos e privados, e a regulação dos fluxos de capitais; e, por outrp, o risco de falência geral do sistema capitalista, caso não venha a adotar aquelas medidas.
A saída real para o mundo, sobretudo para os que vivem principalmente do seu trabalho, está em ganhar coragem para romper com o capitalism neoliberal e, em última instância, com o próprio capitalismo. Isto significa diversas coisas: colocar limites e regras para os fluxos de capital e a emissão das diferentes formas de dinheiros; criar instituições a níveis nacional e internacional capazes de tornar efetivas essas regras e sancionar os agentes que as violarem; reformar radicalmente as instituições financeiras internacionais, seus princípios, funções e modo de operar; replantar o controle das finanças de cada família e comunidade nelas próprias, através da multiplicação de instituições cooperativas de poupança e crédito e de legislação adequada para apoiá-las; restabelecer o poder de planejar o desenvolvimento, do micro até o macro, usando as finanças como um meio apenas, pois o fim deveria ser o desenvolvimento do ser humano, pessoa e coletividade.
Lugano, 24/1/99. |
Marcos ARRUDA Socioeconomista e educador do PACS (Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul, Rio de Janeiro) e membro do Instituto Transnacional (Amterdam).
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